quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

"O atentado contra o Padre Magnani"


Em se tratando de ícones religiosos, de modo muito particular, carrego diferenciado apreço por José Magnani. De personalidade e temperamento revolucionários, de porte diferenciado, ousado, impulsivo, afrontando valores e posturas de uma época, Magnani envolveu-se na causa abolicionista e teve grave participação na política local e seus desfechos. Corajoso e fascinante, polêmico e intransigente, herói e contraventor, assim era o vendaval em forjado em sacerdócio... Então, um pouquinho de Padre Magnani, extraído do livro de Edson Fernandes, Histórias Incomuns.


UM TIRO NA NOITE
O atentado contra Magnani

Na noite de 30 para 31 de março de 1899, início da sexta-feira santa, o padre Giuseppe Magnani voltava da igreja matriz e seguia pela rua Duque de Caxias em direção a sua casa, acompanhado de Martinho Santini, quando um cavalo irrompeu das sombras da noite, se aproximou e um jovem cavaleiro disparou um tiro de garrucha que rasgou o silêncio da vila.
“(...) um cavalo irrompeu das sombras da noite, se aproximou e um jovem cavaleiro disparou um tiro de garrucha que rasgou o silêncio da vila.”
Rápido como chegou, o cavalo “Odeon” sumiu na noite deixando caído o padre Magnani, atingido por bagos de chumbo no peito, na barriga, que lhe penetraram o pulmão.
Esta é a história das intrigas, acusações e julgamentos que levou à prisão do jovem Lazinho, autor do atentado contra a vida do vigário de Lençóes.
O padre Magnani não era uma pessoa de trato fácil. No início daquele fatídico ano de 1899, já se envolvera numa feroz polêmica com um dos políticos mais influentes de Bauru a respeito das eleições de juiz de paz daquele povoado. Num artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 18 de janeiro de 1899, Azarias Ferreira Leite se dirigia a Magnani, “padre desmoralizado e sujo, foragido de Garfagnani em companhia de uma moça que vive em sua companhia e que passa por irmã sua, que não desejo discutir consigo, enquanto não exibir folha corrida das autoridades de sua terra natal”.
A acusação de que o padre tinha uma amante que se passava por sua irmã e que se casara com o sacristão era corrente em Lençóes.
Azarias Leite afirmava que o juiz de direito de Lençóes Leocadio Leopoldino e o “tal padre cabeludo de Garfagnani” eram “almas danadas da Comarca de Lençóes” e denunciava o juiz como prevaricador, “subornado pelo padre Magnani e pelo agrimensor Ismael Falcão, ambos suficientemente conhecidos”.
A política era uma área imprópria para almas sensíveis e naquele meio não havia inocentes.
Dias depois, o coronel José Candido da Silveira afirmou ter sido agredido por dois capangas de Magnani, um dia após a realização de eleições.
O padre tinha há tempos muitos inimigos que tinham muitos motivos para neutralizá-lo. Faltava alguém disposto a fazer o trabalho sujo e este alguém foi Lázaro Camargo de Melo.
Lazinho, como era conhecido, tinha 21 anos de idade e foi classificado por uma autoridade policial como um “criminoso vulgar”. Apesar da pouca idade, sua ficha era extensa, sempre envolvido em desordens, furtos de animais e atentados contra diversos moradores da região.
Seus próprios pais atestavam seu mau comportamento. Já havia sido condenado anteriormente, mas, num novo julgamento, fora absolvido.
Certa vez, quando esteve preso na cadeia de Lençóes, maltratou a própria mãe, arremessando-lhe na cara o prato em que ela lhe levava comida.
Com toda esta folha corrida, já havia sido soldado e até sargento de polícia! Atuava em Campos Novos de Paranapanema e cometera diversas faltas graves em serviço como extravio de peças de fardamento, o que fez as autoridades daquele lugar pedirem sua retirada.
De outra vez, Lazaro estava num bilhar conversando com algumas pessoas. Dario José de Sant’Anna, presente no local, ouviu Lazaro afirmar que se lhe dessem um conto de réis e um cavalo mataria José Magnani. Alguém provocou: e se fosse por duzentos mil réis? Lázaro afirmou que sim, também mataria por aquela quantia. E riu.
E o tiro foi dado na noite de 30 para 31 de março de 1899, deixando caído o padre Magnani.
Após o tiro, Lazinho partiu a cavalo rumo ao Paraná. Na fuga parece ter se apoderado de dois outros animais, além do cavalo “Odeon” com o qual praticou o delito: outro cavalo vermelho e uma besta, com os quais foi visto em uma ocasião. Na tarde do dia 1º de abril foi visto em Avaré, cruzou o rio Paranapanema, passou por Santo Antônio da Boa Vista. Noutra ocasião foi visto apenas com o animal que montava, uma mula. Consta que levava 600$000 em dinheiro. Para o delegado, era o dinheiro que recebera pelo atentado. Para a defesa, tudo indicava que era fruto da venda dos animais furtados.
Três dias depois do atentado, em depoimento o padre Magnani afirmou que sua morte estava há muitos meses deliberada por seus adversários políticos – empregados da câmara municipal, autoridades policiais e outros -, e nomeou um deles, o advogado Sebastião Ribas da Silva.
Nascido em São Paulo em 1871, Sebastião fez parte do Batalhão Acadêmico de São Paulo. Jovem, mudou-se para Lençóes e manteve estreitas relações com a elite política e econômica da terra, advogando e militando na política, ambas atividades que lhe renderam aliados e desafetos, como era comum na agitada Lençóes, e um curto período na prisão, junto com duas outras figuras eminentes, o tenente-coronel José Candido da Silveira Correa e o major Otaviano Martins Brisola.
Lazinho e Sebastião Ribas já haviam sido aliados numa ocasião, quando o advogado moveu uma execução contra Gabriel de Souza Vieira, residente no sertão do Bauru. Gabriel era temido por todos os oficiais de justiça que recusavam efetuar diligências contra ele. Vários deles haviam sido ameaçados pelo filho de Gabriel. O que fez Ribas? Recorreu aos serviços de alguém de mesma espécie. Lazinho serviu então de oficial de justiça ad-hoc, em 11 de fevereiro de 1898. Numa segunda penhora de bens de Gabriel, em 23 de março do mesmo ano, mais uma vez Lazinho foi contratado, desta vez para fazer o serviço com o oficial de justiça Miguel Paulo de Andrade.
Lazaro comprou o cavalo com a fiança de Sebastião Ribas, o que fez crer aos seus acusadores que eles estavam de tramoia contra o padre. A defesa do réu, no entanto, demonstrou
que a fiança só teria validade se Lazaro efetuasse a diligência contra Gabriel Vieira. O vendedor do cavalo, Osório de Melo Coelho, depôs no inquérito e exibiu o documento, escrito pelo próprio Lázaro, onde constava que a fiança era condicional.
Recuperando-se dos ferimentos, Magnani decidiu criar um jornal. O Imparcial veio à luz no final de maio de 1899 e serviu para o vigário defender suas causas, inclusive fazendo severas críticas ao projeto de lei apresentado ao Congresso do Estado transferindo a comarca de Lençóes para São Paulo dos Agudos que, afinal, acabou acontecendo.
Enquanto se processavam os preparativos para o julgamento, Lázaro Camargo de Melo foi localizado em Castro, Estado do Paraná.
No dia 16 de setembro de 1899, teve inicio a 3ª sessão anual do júri da Comarca, em Agudos. O juiz era Leocadio Leopoldino da Fonseca e Silva e promotor o advogado Gabriel de Oliveira Rocha.
Nesse dia respondeu por crime de morte o réu Pedro Arruda. Foi defendido pelo dr. Paulo de Lacerda Pessoa, sendo condenado a 30 anos de prisão celular. Seu advogado protestou por novo julgamento.
No dia 19 entraram em julgamento os réus José Gonçalves Cardoso, por tentativa de assassinato, e Porfirio Venâncio, por ofensas físicas. Foram absolvidos.
No dia 20, teve início o aguardado julgamento de Sebastião Ribas da Silva, acusado de ser mandante da tentativa de assassinato de José Magnani. A defesa, a cargo de Paulo Lacerda e auxiliado por Eduardo Carr Ribeiro, procurou desqualificar as testemunhas e as provas.
A defesa soube explorar as inconsistências presentes nos depoimentos das testemunhas de acusação, entre elas Candido Alvim da Palma, João Damasceno da Rocha e Joaquim Poli. Por exemplo, João Damasceno depôs dizendo que entre Lazaro e Magnani não havia inimizade. No entanto, no próprio dia do crime, afirmara ao chefe de polícia que era sabido que Lázaro há muito prometera matar o padre.
Sebastião Ribas foi absolvido. O coronel Delfino Alexandrino de Oliveira Machado ofereceu em seu palacete um jantar em sua homenagem.
A sessão do júri foi encerrada com o julgamento – e absolvição – de Osório Nogueira e Firmino de Tal.
O resultado do julgamento deixou o padre furioso. Seu jornal, O Imparcial, publicou ataques furiosos contra o advogado Paulo Lacerda.
No ano seguinte, Magnani sofreu vários reveses. Teve suspensas suas ordens eclesiásticas e foi substituído por outro vigário, Francisco Xavier Costabile. Uma capela que havia construído fora interditada, mas Magnani se recusava a fechá-la. Costabile recorreu à polícia para fechá-la, mas Magnani se escondeu para não entregar as chaves.
O novo vigário acusava Magnani de pintá-lo como um “muçulmano”, um “bandido” para colocar o povo contra ele. Fez acusações graves: afirmou que Magnani “procurou armar braços para assassinar-me!”.
No início de junho de 1900, Magnani foi preso acusado de estar incurso no §10 do art. 338 do código penal. A prisão foi efetuada por uma força vinda da capital. O padre requereu no mesmo dia habeas-corpus e saiu poucos dias depois da cadeia de Agudos.
Faltava o julgamento de Lazaro, que ocorreu um ano depois, dezembro de 1900, em sessão presidida pelo dr. Barros Barreto. Tudo indica que várias sessões foram realizadas até a decisão final.
Em março de 1901, mais um julgamento, desta vez sob a presidência do juiz de São Manuel, Abelardo de Almeida Pires, que atuou devido ao impedimento do juiz Barros Barreto, denunciado ao Tribunal de Justiça por perseguição ao padre Magnani.
No penúltimo julgamento, Lazaro havia sido condenado no grau máximo da pena. A atuação de seu defensor, Fábio Guimarães, conseguiu minorar sua pena, reduzida a 4 anos de prisão celular.
Condenado, Lazinho foi transferido a capital, chegando no dia 03 de maio de 1901. Lá, foi removido para a penitenciária.
Eis o fim de alguns personagens:
Sebastião Ribas da Silva, como vimos, nasceu em São Paulo, mas passou parte da juventude em Lençóes, onde se casou com Georgina (Geny), filha de Ângelo Pinheiro Machado, potentado local. O casamento ocorreu em dezembro de 1899, seis meses após o atentado ao padre. Ele tinha 28 anos, ela 16. Tiveram 6 filhos.
Ribas da Silva foi advogado da Companhia de Estrada Sorocabana e agente de uma companhia de seguros na capital, para onde se estabeleceu pouco tempo depois do atentado e onde atendia na rua Direita. Na capital, também estabeleceu relações com a elite econômica e política. Foi aceito como sócio do Jockey-Club Paulistano, em outubro de 1902 e foi diretor de corridas do clube em anos seguintes. Dedicou-se à criação de cavalos, importando alguns deles.
Sebastião Ribas da Silva faleceu em junho de 1938. Georgina, sua mulher, viveu a viuvez por muitos anos: faleceu em setembro de 1966. Ambos estão enterrados em Lençóis.
Eduardo Carr Ribeiro – Pouco antes do atentado, foi vice-presidente da câmara municipal de Lençóes. Era casado com Olímpia Carr Ribeiro. Teve 5 filhos: Eduardo, Yolanda, Odete, Stela, Olímpio. Atuou como advogado em Avaré, Agudos e São Paulo, além de Lençóes. Possuía terras às margens do rio Feio, em Bauru, mas foram colocadas à venda por conta de sua falência.
Azarias Ferreira Leite – mineiro de Lavras, chegou ao povoado de Bauru em 1888. Em pouco tempo, já era destacado fazendeiro e chefe político local. Foi presidente da Câmara Municipal de Bauru até que, por desavenças política, foi assassinado no dia 19 de outubro de 1910, quando se dirigia de sua fazenda para a cidade.
José Magnani - Não sendo mais vigário da paróquia desde 1900, Magnani continuou servindo à causa da religião, mas ficava como uma sombra sobre os párocos que se sucediam em Lençóes. Sabe-se que vivia às turras com seus sucessores, o primeiro deles, padre Francisco Constabile, ficou cerca de um ano na paróquia. Em setembro de 1902, o governador geral do bispado concedeu novamente a Magnani as provisões de uso de ordens, de confessor e pregador, e também provisão da capela de Nossa Senhora da Pompéia que ele havia construído. Tempos depois, reassumiu o vicariato da matriz. Testemunhou o rigoroso inverno de 1918, quando a temperatura baixou a 4,8 graus negativos deixando o solo coberto com uma camada de neve que queimou toda a vegetação das áreas altas e baixas da região. Morreu no dia 14 de junho de 1921 com a idade de 70 anos. Seus restos mortais estão hoje no Santuário Nossa Senhora da Piedade.
Lázaro Camargo de Melo – Cumprida sua pena, voltou para o interior. Em 1906, morreu em São Manoel em confronto com a polícia.

Fontes:
Oliveira, Laura Laís; Gomes, Roger Marcelo Martins. Igreja e coronelismo: o padre dom José Magnani entre os coronéis de Lençóis Paulista. Disponível em:
http://www.usc.br/biblioteca/pdf/jor_2009_hga_igreja_e_coronelismo_o_padre_dom_jose_magnani_entre.pdf
Bastos, Irineu Azevedo. Sertão noroeste: o poder municipal na República Velha. Bauru, SP: Edipro, 2000.
Jornal O Estado de S. Paulo, edições 03 abril 1899; 20 abril 1899; 28 maio 1899; 14 junho 1899; 19 abril 1899; 05 outubro 1899; 17 dezembro 1900; 04 maio 1901. Disponível em: http://acervo.estadao.com.br/. Acesso em janeiro 2013.


                                                     
                                                                                                              guardiadelendas.blogspot.com
                                                                                                               Célia Motta.


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